domingo, 23 de maio de 2010

Escada para o céu


Sempre tive um certo encantamento por escadas, o que é fácil de se compreender. Nas escadas era onde sempre se davam as lutas de espadas, os beijos ardentes dos amantes, ou onde se descobria lá no alto, no fim da escadaria o esconderijo de ninguém menos que ele: o assustador conde Drácula! Com aquele olhar sedento de sangue que ninguém jamais fará como Christopher Lee.
Nossa casa não tinha escada, era tudo no terreo mesmo, nenhum subterfúgio para as fantasias de um menino que navegava entre os Capitães de Areia, Mandrake, Fantasma, Super homem, Batman, O Principe Valente, Zorro e Tonto, Tio Patinhas, Zé Carioca e alguns livros da Adelaide Carraro.
Um dia a nossa caixa d’agua deu um defeito na bóia e vazava aquele mundaréu de água quando ela enchia. Então meu pai mandou arrumar, e de quebra pediu que construíssem uma escada pra se subir até a caixa d’água, assim qualquer problema seria resolvido por ele mesmo. Meu pai sempre gostou de subir nas árvores e faz isso até hoje aos 83 anos!
Eu mal conseguia dormir direito, imagine só! Uma escada em casa! Eu ia poder subir e descer com minha espada de plástico, ou usando minha capa preta de Drácula feita de tecido do velho guarda chuva de meu pai, a imaginação voava sem limites, nem conseguia definir que herói eu seria primeiro.
Enfim a escada ficou pronta em dois dias, que pra mim foram dois anos! Mas ela estava lá finalmente, “stairway to heaven”! eu me identificaria anos depois com a canção do Led Zeppelin. Quando chegou enfim o dia em que pude explorar a escada de madeira que conduzia até a caixa d’água, mas que para mim era muito mais que isso, era tirar os pés do chão, era ver tudo lá do alto, era dar vazão aos heróis que precisavam de uma escada pra serem completos. De espada em punho, comecei a subir a escada pé ante pé, saboreando cada passo, esperando surgir um inimigo em cada degrau. Até chegar ao topo que era a caixa d’água, ou melhor, a torre do castelo. Ai me sentei no último degrau e fiquei olhando, lá de cima podia ver todo o quintal, a goiabeira, o telhado do armazém, da casa, a igreja que ficava em frente da casa lá do outro lado da rua, bem no meio da praça, o cinema, o pau da gambira, uma enorme gameleira que era palco de todas as negociações possíveis, negócios de gado, de fazendas, bicicletas, frangos e etc. e que foi derrubado anos depois, quando resolveram refazer a praça sob alegação de que numa praça moderna não cabia uma árvore tão grande! O que gerou protestos do povo em geral, porque além de tudo era uma bela árvore, muito frondosa, dava uma generosa sombra, escondia casais de namorados à noite atrás da cumplicidade de seu tronco grosso.
Fiquei ali, vislumbrando o mundo do alto, meu mundo, tão pequeno parecia tão grande aos meus olhos. Agora eu podia ficar de sentinela na minha cidade. Podia avistar de longe qualquer ataque de apaches ensandecidos por escalpos, ou bombardeios de kamikazes determinados a morrer pelo império do sol nascente.
Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando tudo, até onde a vista podia alcançar. logo vi que o nosso pé de manga fazia um bela sombra no telhado, e que era um excelente lugar pra ficar deitado lendo meus gibis, que eu acabava deixando lá em cima mesmo dentro de um caixote, agora eu tinha minha biblioteca secreta!
Assim todo dia ao chegar da escola, corria pra trocar o uniforme por uma roupa mais confortável, e subir pro meu esconderijo, onde ficava horas lendo sob a sombra do pé de manga, e onde ficava a salvo do chato do meu irmão mais velho que gostava de mandar. Tinha os cabelos bem louros e olhos claros, o que deveria representar um padrão de beleza, pra todos que o viam, mas pra mim era só uma miniatura de nazista arrogante. Igualzinho aos que eu via no cinema.
Um belo dia eu estava lendo “O último tango em Paris”, que o Aderson me emprestou, ele tinha conseguido esse livro de alguém que tinha trazido de Goiânia. O filme com a história do livro tinha sido proibido no Brasil, eram os reflexos dos anos de chumbo que chegavam até a distante Jussara. É lógico que o que nos levou a querer ler esse livro foi o fato do filme ter sido proibido. É bom ressaltar que na nossa cidade nessa época nem banca de revistas tinha, ou seja nem foto de mulher pelada a gente tinha visto ainda. Pois bem, estava eu compenetrado na leitura do livro, tentando imaginar as formas angulosas da personagem do livro, quando ouvi minha mãe me gritando pra ir comprar alguma coisa. Permaneci em silencio na esperança de que ela imaginasse que eu não estava em casa. E passasse enfim a minha tarefa pro meu irmão. Mas mãe, sabe tudo da gente, até onde a gente se esconde. Não dá pra fugir de uma mãe.
- desce menino! Eu sei que você tá ai em cima! Ainda vai acabar caindo desse telhado, parece macaco! – disse ela já com o timbre da voz já bem zangado. O jeito foi fechar meu livro proibido guarda-lo no caixote, e descer o mais rápido que pudesse pra não apanhar de vara de goiabeira. Comecei a caminhar pelo telhado em direção a caixa d’água, onde ficava a escada pra descer a tempo de não deixar minha mãe ainda mais zangada. Na minha pressa pisei em falso no primeiro degrau de cima e me precipitei num mergulho que aconteceu tão rápido, que só me lembro do rosto batendo numa telha que ficava no chão, onde pingava água quando a caixa transbordava. Minha visão ficou vermelha e não vi mais nada.
Quando acordei estava numa cama do hospital, tinha amassado o nariz por onde tinha sangrado muito, e por pouco não quebrei o pescoço. Quando enfim voltei pra casa dois dias depois, minha escada tinha sido retirada. Lá estava eu com os dois pés no chão outra vez.

As moedas do sesquicentenário

Quando o Brasil completou cento e cinqüenta anos de independência de Portugal, o governo lançou umas moedas comemorativas, que eram bem maiores que as normais e que vinham em um estojo de acrílico, e tinham um valor simbólico de algo em torno de 50 cruzeiros
Não me lembro como, mas minha mãe apareceu com estas moedas lá em casa, não me recordo se comprou, ou se ganhou de alguém. As moedas eram grandes quase o diâmetro de um bracelete de criança.
De cara, fiquei maquinando uma forma de utilizar melhor essas moedas, e ir ao cinema me pareceu a melhor idéia. Aqui é preciso lembrar que pouca gente tinha conhecimento da existência de tais moedas na minha cidade, além é claro do pessoal lá de casa.
A primeira dificuldade seria passar as moedas na bilheteria do cine Santa Lúcia, onde trabalhava uma loura chamada Zizi. Que tempos mais tarde faria a alegria de garotos nas excursões do colégio Dom Bosco, não era preciso muita coisa pra obter os favores sexuais de Zizi, que a esse tempo se aproximava dos seus trinta anos, e pelo seu apetite, demonstrava claramente que já não queria perder mais tempo na vida, o Edy sempre foi o favorito dela, mas a turma toda passou pelas suas prestimosas mãos e tudo o resto. Mas isso é assunto pra uma outra história.
No sábado à noite era grande o movimento na porta do cinema, como não havia missa, a sessão começava mais cedo, eu estava ansioso com as duas moedas sem valor no bolso, sabia que se fosse pego seria encaminhado diretamente ao seu Geraldo Caixeta, ninguém menos que meu pai, e a surra seria coisa certa.
Fiquei por ali olhei os cartazes dos filmes que iriam estreiar nas próximas semanas mas sem conseguir desviar minha atenção da minha maquiavélica intenção, passar moedas falsas na Zizi!
Uma fila começou a se formar na bilheteria, com as duas mãos nos bolsos da calça US Top novinha, me posicionei na fila que andava rápido demais, mais rápido ainda andava meu coração. Até que chegou minha vez, a Zizi me olhou com seus enormes olhos azuis, talvez com fome de menino, mas não foi essa a leitura que fiz do seu olhar. Pra mim ela estava tentando ler meus pensamentos, e até já sabia pela minha cara mal disfarçada de bom garoto, que eu queria engana-la.
- me dá um ingresso? – a voz mal saiu da minha boca, e no meio do burburinho na porta do cinema ela não me ouviu.
- um ingresso? – perguntou a Zizi, como se não fosse obvio, uma pessoa na bilheteria de um cinema querer um ingresso. O que eu haveria de querer? Um pé de alface? Pensei com meu escapulário do Sagrado Coração de Jesus que reprovava minha atitude e parecia queimar no meu peito. Só assenti com a cabeça, nessas alturas a voz estava presa na garganta
Com as mão tremulas retirei a moeda do bolso da calça, e a passei pela abertura da bilheteria. A Zizi a pegou surpresa, olhou atentamente, mas não quis dar a entender que ainda não tinha visto a “nova” moeda, e só comentou com um sorriso de entendida:
- ficaram bonitas estas novas moedas não é? – eu só sacudi a cabeça concordando e respirando aliviado, a Zizi coitada tinha caído no meu golpe. Rapidamente ela me passou o troco, que daria pra ir no cinema mais umas nove vezes! Sem ter que pedir dinheiro pro meu pai, coisa que era muito constrangedora pra um menino que mal abria a boca.
Não me lembro que filme vi naquela noite de sábado, mas o gostinho de vitória por ter enganado a Zizi, rapidamente deu lugar, a um medo que foi crescendo, de ser descoberto principalmente em casa. O que não deveria demorar muito.
Uma semana depois, no almoço de domingo, todos à mesa, começa o almoço e minha mãe olhava seguidamente para um e para outro filho, expressão séria, que raramente fazia nos almoços de domingo, a menos que alguém saísse da linha.
- eu quero falar uma coisa. – disse ela assim do nada. E quando Dª Ilda dizia isso “eu quero falar uma coisa” era encrenca na certa.
- eu comprei duas moedas do sesquicentenário da independência do Brasil, e guardei na cristaleira. Alguém foi lá e pegou. Essas moedas não tem valor algum, e se quem pegou tentar comprar alguma coisa, pode até ser preso. E tem mais, eu já sei quem foi!
Um silencio como denso como um elefante se fez na mesa. Os meninos olhavam um pro outro com cara de assustados. Meu coração disparado quase saia pela boca, tinha sido pego afinal! Ia levar uma surra daquelas! Mas pelo menos ia acabar a ansiedade de ser pego a qualquer momento, que estava me consumindo, muito mais pelo medo da surra, do que de arrependimento devo confessar. Estavam todos de olhos fixos na minha mãe esperando o veredito, menos eu que não ousava fixar o olhar nos seus olhos zangados, já esperando o meu nome ser pronunciado com todas as letras, inclusive o “R” no final, que era como ela fazia quando estava zangada com algum filho, como o nome de quase todos a exceção da Maria e do João, termina com “R”, quando esse “R” era bem acentuado no final do nome era só esperar o castigo.
- foi o Deusimarrr! – engoli em seco, ao ouvir minha mãe dizendo o nome do meu irmão, que de santo nunca teve nada graças a Deus. Eu não podia acreditar, tudo bem que não tinha sido descoberto, mas agora ia carregar o peso da culpa de ver meu irmão apanhar por uma coisa que eu tinha feito. E ainda tinha a outra moeda pra gastar antes de ser apanhado.
- mãe eu juro que não fui eu! – disse Deusimar, entre indignado e apavorado. Já quase chorando.
- eu sei que foi você! – retrucou minha mãe com convicção, - eu vi você olhando muitas vezes para as moedas seu safado!
Como ela podia ter tanta certeza se tinha sido eu? Ela não tinha. Por isso mesmo o Deusimar não foi castigado, minha mãe apenas suspeitava, e esperava obter uma confissão do pequeno gatuno, mas ele nunca confessou uma culpa que não tinha. E o caso das moedas ficou por isso mesmo. E o ladrãozinho das moedas nunca foi descoberto. Até muitos anos depois quando enfim confessei pra minha mãe, e rimos muito disso mas, levei meu puxão de orelhas só pra matar a saudade.
O moleque daqueles tempos, seguiu gastando o dinheiro resultante da troca das duas moedas sem valor, indo ao cinema por semanas seguidas. Nunca me orgulhei disso, mas nunca nada vai me pagar o gosto bom de ir ao cine Santa Lucia nos sábados e domingos. Viajar no tempo e no espaço, empunhar uma espada, cavalgar um cavalo pampa de apache empunhando uma machadinha, ou rastejar com suor escorrendo pelo rosto empunhando um fuzil nos campos de batalha acertando nazistas. Ou ainda beijando os lábios de Claudia Cardinale, no final do filme quando tudo dá certo.