quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Os Donos do Céu


No início dos anos 70, eu e meu amigo Beto vimos no antigo teatro da então Escola Técnica Federal de Goiás, um Alceu Valença em inicio de carreira, acompanhado na viola, por um desconhecido chamado Zé Ramalho da Paraíba!
Naquela ocasião, trazíamos ás costas nossas mochilas cheias de sonhos e algumas camisetas, havia no local pouco mais de 50 pessoas, porque o lugar era pequeno, e porque Alceu realmente era muito pouco conhecido.
Terminado o show, saímos dali orgulhosos de nossas mochilas, o Beto usava nessa época um cabelo estilo David Bowie. As mochilas sempre estiveram conosco. Mas nunca imaginei que um dia estariam cruzando o interior da Espanha rumo a Santiago de Compostela.
Numa viagem que se assemelha muito a viagem que todos nós fazemos, ao percorrer passo a passo, cada dia de nossas vidas, não é apenas uma caminhada, deixa de ser no momento em que damos o primeiro passo, o sangue mais oxigenado pela pureza do ar e pelo exercício físico, chegando ao cérebro, nos faz meditar, ao longo do caminho, sobre coisas que nem imaginamos a maior parte do tempo.
Acredito que assim como na longa ou curta caminhada da vida, cada um vê a paisagem de um modo diverso do outro, alguns nem se dão a esse trabalho, apenas caminham. Valdir constrói nesse seu “Donos do Céu”, um paralelo interessante, entre viver e caminhar, descrevendo a seu Caminho de Santiago, etapa por etapa, alinhavando aqui e ali lembranças da sua terra natal: Jussara. Vai nos conduzindo sem pressa, bom contador de histórias que é, quase um mineiro! Sempre vi Valdir como um mineiro, as vezes ficava horas olhando o horizonte, talvez visualizando a próxima viagem. Sempre foi de poucas palavras, compartilhamos esse defeito ou qualidade, depende de onde se está.
Num relato cheio de bom humor, em face das dificuldades da empreitada a que se propôs, ele e seu fiel escudeiro Beto o mesmo do cabelo do David Bowie, se aventuram naquela que é a aventura dos sonhos de dezenas de milhares de pessoas no mundo todo.
Comovente, sensível, capaz de fazer vibrar e chorar, Valdir nos surpreende com um livro impressionante, misto de reportagem jornalística e romance de uma geração, que cresceu sem TV, Internet e vídeo game. E que sabia da existência do resto do mundo, pelos filmes de sábado no Cine Sta Lúcia e pelo rádio da sala. Bom observador nos dá descrições precisas da paisagem, e nem poderia ser diferente, afinal a câmera fotográfica por um capricho do destino se perdeu no caminho, obrigando aos nossos peregrinos a fotografar tudo na memória. E é disso que esse livro nos fala: caminhos, “...quantos caminhos um homem deve andar antes que seja chamado homem? a resposta meu amigo está soprando com o vento” Não saberia dizer quantas vezes, mochila, nas costas saíamos de Goiânia rumo a Jussara ou vice versa. Mesmo que isso significasse levar mais tempo do que simplesmente pegar um ônibus, não importava, o importante era meter o pé na estrada sempre. A pressa nunca foi uma qualidade de nenhum de nós. Não podíamos ter pressa, havia a paisagem. E nem tínhamos lido ainda João Guimarães Rosa “...o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”
Não espere respostas nesse livro, nem um final fantástico onde anjos e demonios se degladiam pela alma dos peregrinos, não, aqui só há a dura realidade das dores nos ombros e das bolhas nos pés.
Quase sempre que um prosador se mete a escrever poesia o resultado não é dos melhores, parece faltar ao contador de histórias, a intimidade com o vôo alto dos poetas, falta um pouco de delírio necessário. mas o contrario funciona muito bem, ou seja, sempre que um poeta se mete a escrever prosa, pode-se esperar um texto denso e rico em lirismo, é o poeta espalhando versos num espaço maior, e com toda liberdade que a prosa generosamente concede. É o que acontece nessa narrativa. Que poderia muito bem ser apenas uma descrição jornalística do caminho de Santiago. Mas aqui o narrador é um poeta, nesse caso o buraco não é mais embaixo, mas a montanha a subir é mais alta.
Para contar sobre o lado de dentro dessa história de mochileiros, sobre a vida vista do ângulo do pátio da Igreja matriz de Jussara, onde bebíamos vinho ao amanhecer com pão ou rosca. Valdir Queiroz, poeta sensível, cheio de inteligência e amor, mostrou-se generoso o bastante para decidir-se a escrever pra nós esse livro.



Beto durante a caminhada